quarta-feira, 28 de abril de 2010

domingo, 25 de abril de 2010

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Ellen Von Unwerth - IV

Skull Snaps - It's A New Day

Francisco de Goya

De volta: só podia ser este poema

Era uma vez um poema escrito num guardanapo
Ao balcão do pequeno e discreto bar do Hotel Shangri-La. Lugar
Onde vinham encontrar-se, às escondidas (é bom de notar), não só
Romeus e julietas mas sobretudo gente suspeita que fazia por pensar
E cunhar ideias. Marginais e conspiradores, apóstatas
E assassinos a soldo – um enclave de exilados e profetas sem emprego
Que ali encontravam uma espécie de justiça
Para os seus esforçados madrigais. Havia lá a um canto
Uma velha grafonola que percorria repertórios de vozes em luto,
Esse inconsolável choro que se afina pelos maus tratos da vida.
Havia ainda um telefone de modelo antigo que servia apenas
Para efectuar chamadas a pagar no destino. Útil sobretudo por
Motivos de decoração, já que destino era coisa em que ninguém ali
Acreditava. Foi por lá que me foram recomendados os serviços de uma prostituta.
Uma mulher feia e doce que me ensinou a não pedir amor, mas só
Um modo de partilhar a sensação de cair, que é afinal “aquilo que nos aproxima”.

Oriunda de um pequeno bairro de Buenos Aires embalou-me
Como a um filho doente de uma erecção.
Deu-me cama, pão e carinho e não cobrou mais que aquilo
Que eu tinha para dar, o que – há que convir – foi sempre pouco.
E embora não me pareça que vá algum dia escrever
Um livro de memórias (para quê arrumar o que não passa
De desarrumação), ainda assim não deixarei
De falar dela aos meus netos.

Foi também por lá que vi pela primeira vez
Um homem zangado com a sua sombra. Queixava-se que ela
O perseguia para todo o lado. E se no inicio de cada noite
Parecia maluco, no final era o único que fazia sentido.
Recusava-se a dizer o seu nome e obrigava as pessoas a tratarem-no
Pelo nome da bebida que lhe estavam a oferecer.
Era um daqueles casos perdidos que nos encanta
Porque nos faz esquecer de nós. Um lunático
Com um eclipse cerebral, como ele dizia. E só bebia mesmo
O que lhe ofereciam e ofereciam-lhe tudo para lhe pagarem a alegria.
Andava para trás e para diante com uma velha caixa de música
Que tocava a Sonata ao Luar de Debussy e não dizia o quê,
Mas nunca me lembrei de um bom motivo. Até que uma certa tarde
Me foi dito que se tinha irritado de morte com a sua sombra
E se tinha jogado de uma ponte para a afogar.
Morreu-se-nos
Assim, sem se despedir.
Nós ficámos por ali com o peso das moedas nos bolsos
Sem ter quem lhes desse valor. Juntámos os trocos
E pagámos-lhe um esquife acolchoado, onde a sombra dele
Se aquietou por debaixo do corpo.
Pendurámos-lhe na roupa clips com notas
Que ele havia escrito sobre processos de exumação de difíceis cadáveres.
Enterrámo-lo e o bar foi perdendo a clientela. Fechou, não sei,
Nunca mais lá voltei.

Vim reclamar o meu pedaço de chão para crescer
Um limoeiro a mijo e fazer da chuva limonada. Fiz uma casa
Com elásticos, cartolina e palitos.
Arranjei um colchão e uma escrivaninha
Onde meti uma asquerosa plante de plástico
Que se debruça sobre mim enquanto vos escrevo. Só para me lembrar
Que tudo o que não morre, não presta.
Pratiquei em verso a arte de abrir sorrisos
A quem não tem dentes.
Falhei.

(…)

"Il Miglior Fabbro" de Diogo Vaz Pinto