domingo, 28 de março de 2010

Ellen Von Unwerth - III

Bill Callahan: Tiny Desk Concert

Três vianenses do início do séc XX: Oskar Kokoschka, Gustave Klimt e Egon Schiele





Para quem quiser receber, eu vou viajar mas volto...

Naquele tempo era eu adolescente
Tinha apenas dezasseis anos e já não me lembrava da minha infância
Esteva a 16000 léguas do lugar onde nasci
Estava em Moscovo, na cidade dos mil e três campanários e das sete gares
Mas não estava farto das sete gares e das mil e três torres
Porque a minha adolescência era então ardente e tão louca
Que o meu coração ardia, como o templo de Éfeso ou a Praça Vermelha de Moscovo
Ao pôr do sol.
E os meus olhos iluminavam caminhos antigos.
E era já tão mau poeta
Que não sabia ir ao fundo das coisas.

(...)

E no alto de um trapézio uma mulher faz uma meia lua.
Um clarinete um cornetim uma flauta estridente e um mau tambor
Eis o meu berço
O meu berço
Estava sempre junto do piano quando a minha mãe como Madame Bovary tocava sonatas de Beethoven
Passei a minha infância nos jardins suspensos da Babilónia
E a fazer gazeta à escola, nas gares, diante de comboios que partiam
Agora, fiz todos os comboios correr atrás de mim
Bâle-Tombuctu
E também joguei nas corridas de Auteil e de Longchamp
Paris-Nova-Iorque
Agora, fiz correr todos os comboios ao longo da minha vida.
Madrid-Estocolmo
E perdi todas as apostas
Só a Patagónia, só a Patagónia convém à minha imensa tristeza, a Patagónia e uma viagem aos mares do Sul
Estou a caminho
Estive sempre a caminho
Estou a caminho com a jovem Jehanne de France
O comboio dá um salto perigoso e cai sobre todas as rodas
O comboio cai sobre todas as rodas
O comboio cai sempre sobre todas as rodas

"Blaise, diz-me, estamos muito longe de Montmartre?"

Estamos longe, Jeanne, viajas há sete dias,
Estás longe de Montmartre, da Butte onde foste criada do Sacré-Coeur onde te refugiavas
Paris desapareceu e a sua enorme chama
Só há cinzas contínuas
A chuva que cai
A turfa que se dilata
A Sibéria que anda à volta
As pesadas toalhas de neve que sobem
E o guizo da loucura que guizalha como um último desejo no ar azulado
O comboio palpita no coração de horizontes plúmbeos
E a tua mágoa escarnece...

"Diz-me, Blaise, estamos muito longe de Montmartre?"

As inquietações
Esquece as inquietações
Todas as gares gretadas oblíquas sobre a estrada
Os fios telegráficos de que pendem
Os postes fazendo trejeitos que gesticulam e as estrangulam
O mundo estende-se alonga-se e contraí-se como um harmónio que uma mão sádica atormenta
Nos rasgões do céu as locomotivas em fúria
Escondem-se
E nos buracos
As rodas vertiginosas as bocas as vozes
E os cães malditos que uivam no nosso encalço
Os demónios andam à solta
Ferragens
É tudo um acorde falso
O brum-ru-rum das rodas
Choques
Saltos
Somos uma tempestadade sob o crânio de um surdo...

"Diz-me, Blaise, ainda estamos muito londe de Montmartre?"

Estamos sim, és enervante, sabes muito bem, estamos muito longe
A loucura sobreaquecida berra na locomotiva
A peste a cólera levantam-se como brasas ardentes no nosso caminho
Desaparecemos na guerra em cheio num túnel
A fome, a puta, agarra.se às nuvens em debandada
E defeca batalhas em montes fétidos de mortos
Faz como ela, trata da tua vida...

"Diz-me, Blaise, ainda estamos muito londe de Montmartre?"

(...)

Gostaria
Gostaria de nunca ter feito as minhas viagens
Esta noite um grande amor atormenta-me
E contra a minha vontade penso na jovem Jehanne de France.
Foi numa noite de tristeza que escrevi este poema em sua honra
A jovem prostituta
Estou triste estou triste
Irei ao Lapin Agile recordar-me da minha juventude perdida
E beber uns copos
Depois voltarei sozinho para casa

Paris
Cidade da Torre única da Grande Forca e da Roda



Blaise Cendras - "Prosa do Transiberiano"

quarta-feira, 24 de março de 2010

Ellen Von Unwerth - II

Santana & Dave Matthews & Carter Beauford - Love of My Life

Para mim quando estou na varanda a beber café...

Cão que matinalmente farejavas a calçada
as ervas os calhaus os seixos os paralelipípedos
os restos de comida os restos de manhã
a chuva antes caída e convertida numa como que auréola da terra
cão que isso farejas cão que nada disso já farejas
Foi um segundo súbito e ficaste ensanduichado
esborrachado comprimido e reduzido
debaixo do rodado imperturbável do pesado camião
Que tinhas que não tens diz-mo ou ladra-mo
ou utiliza então qualquer moderno meio de comunicação
diz-me lá cão que faísca fugiu do teu olhar
que falta nesse corpo afinal o mesmo corpo
só que embalado ou liofilizado?
Eras vivo e morreste nada mais teus donos
se é que os tinhas sempre que de ti falavam
falavam no presente falam no passado agora
Mudou alguma coisa de um momento para o outro
coisa sem importância de maior para quem passa
indiferente até ao halo da manhã de pensamento posto
em coisas práticas em coisas próximas
Cão que morreste tão caninamente
cão que morreste e me fazes pensar parar até
que o polícia me diz que siga em frente


Que se passou então? Um simples cão que era e já não é



"Requiem por um cão" de Ruy Belo

Pixar - Tennis Commercial

domingo, 21 de março de 2010

Ellen Von Unwerth

Margarida Pinto - Capitão Romance

Para o imaginário a Oeste...

Fiquem aí escutando
conseguirão ouvi-las
minúsculas formas que estão para além
da lua
Pirilampos estelares, dardos,
frondas sombrias
activas mandíbulas de macaco em luta
para efectuar o grito
do correio matinal

Grita mocho.
Presta homenagem ao vidoal.
A serpente-sugadora rasteja, devoradora
impaciente.

Conheço-te.
És aquele que partiu para ir
avisar. Agora saudoso
e taciturno. Transferência
adiada.

Rouba-me um pêssago
da laranjeira
guarda do pomar

Ela caiu.

Que estás fazendo
com a tua mão no
seio dela?

Ela caiu minha senhora.

Dá-ma cá.

Sim senhora.

Vai contar ao patrão
aquilo que fizeste.

Mataram-no.

Mais tarde.

Subindo as escadas
algemado
para a sua cela.

Um tiro de caçadeira
Por detrás das costas.



"Fiquem aí escutando" po Jim Morrison

Logorama: Short film Animated that won the Oscar 2010


quarta-feira, 17 de março de 2010

Trixy Pixie - VII

Funkadelic - Cosmic Slop

"Jammies" por Repoghost

Simplesmente para Lisboa...

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...




"O Beijo" de Alexandre O'Neill

domingo, 14 de março de 2010

Trixy Pixie - VI

Janis Joplin - Ball & Chain

MumblingIdiot

Para o meu amigo em Lisboa...

não fora inventada
a invenção
o castelo de Drácula
era uma hidra de areia
empilhada pelo vento
Não havia catapulta
que tivesse tiranos
a derrubar
nem grifos e ícones para atirar
ao céu
porque o Diabo não era necessário
não fora programado
o bem
e tecnologicamente a invenção do mal
era uma mentira inventada
por um sábio mentiroso
que não existia ainda



"Ainda" - Miguel Barbosa

quinta-feira, 11 de março de 2010

Trixy Pixie - V

Guta Naki



Bryce Wymer

Para o meu amigo a este...

Quand’eu tiver vento na pinha
Quand’eu tiver verde nos ossos
Dirão que troço escarninho
Mas será uma impressão fossa
Porque me faltará
O meu elemento plástico
Plástico ico tico
Que os ratos terão trincado
E o meu par de quilhões
Minhas tíbias minhas rótulas
As minhas coxas e o culo
Sobre o qual me assentava
Meus cabelos minhas fístulas
Meus belos olhos cerúleos
Os meus cobre-mandíbulas
Com os quais vos lambuzava
O meu nariz considerável
Coração fígado e o lombo
As insignificâncias notáveis
Que caíram no agrado
Dos duqueses e das duquesas
Dos papas e das papesas
Dos monges e das mulesas
E das pessoas do ramo
E depois já não terei
Este fósforo um pouco brando
Cérebro que me serviu
Para prever-me sem vida
Verdes ossos, pinha ao vento
Ai como dói o envelhecimento.


Boris Vian

domingo, 7 de março de 2010

Trixy Pixie - IV

Santana & Clapton - Jingo

Fernando Vicente

Dedico à minha amiga do sul...

(...)

Vem soleníssima,
soleníssima e cheia
de uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

"Ao Oriente" de Álvaro de Campos

quarta-feira, 3 de março de 2010

Trixy Pixie - III

Charles Mingus - Boogie Stop Shuffle

Egon Schiele em Julianne Moore (fotografada por Peter Lindbergh)


Dedico ao meu amigo no norte...

"Estendido ao sol, a olhar para o fiorde... Montanhas longínquas pintadas de neve... Mais perto, o azul. Aquele azul clássico que os meninos usam quando aguarelam o mar no tremer das carteiras da escola.
Veredas estreitas amarinham as colinas. Muitas pessoas por toda a parte, umas a passear o sol na pele, outras estagnadas na modorra das pedras...
Risinhos de raparigas que sacodem com volúpia os cabelos de prata... Velhos solitários a habituarem-se ao silêncio próximo... Namorados com os olhos metidos uns nos outros... Famílias honestas gozando a burocracia do sol estampado no céu em forma de carimbo de ouro...
Cheiro a estrume sensual e amargo... Flores escondidas no ar..."

José Gomes Ferreira - "Imitação dos dias"