domingo, 28 de março de 2010

Para quem quiser receber, eu vou viajar mas volto...

Naquele tempo era eu adolescente
Tinha apenas dezasseis anos e já não me lembrava da minha infância
Esteva a 16000 léguas do lugar onde nasci
Estava em Moscovo, na cidade dos mil e três campanários e das sete gares
Mas não estava farto das sete gares e das mil e três torres
Porque a minha adolescência era então ardente e tão louca
Que o meu coração ardia, como o templo de Éfeso ou a Praça Vermelha de Moscovo
Ao pôr do sol.
E os meus olhos iluminavam caminhos antigos.
E era já tão mau poeta
Que não sabia ir ao fundo das coisas.

(...)

E no alto de um trapézio uma mulher faz uma meia lua.
Um clarinete um cornetim uma flauta estridente e um mau tambor
Eis o meu berço
O meu berço
Estava sempre junto do piano quando a minha mãe como Madame Bovary tocava sonatas de Beethoven
Passei a minha infância nos jardins suspensos da Babilónia
E a fazer gazeta à escola, nas gares, diante de comboios que partiam
Agora, fiz todos os comboios correr atrás de mim
Bâle-Tombuctu
E também joguei nas corridas de Auteil e de Longchamp
Paris-Nova-Iorque
Agora, fiz correr todos os comboios ao longo da minha vida.
Madrid-Estocolmo
E perdi todas as apostas
Só a Patagónia, só a Patagónia convém à minha imensa tristeza, a Patagónia e uma viagem aos mares do Sul
Estou a caminho
Estive sempre a caminho
Estou a caminho com a jovem Jehanne de France
O comboio dá um salto perigoso e cai sobre todas as rodas
O comboio cai sobre todas as rodas
O comboio cai sempre sobre todas as rodas

"Blaise, diz-me, estamos muito longe de Montmartre?"

Estamos longe, Jeanne, viajas há sete dias,
Estás longe de Montmartre, da Butte onde foste criada do Sacré-Coeur onde te refugiavas
Paris desapareceu e a sua enorme chama
Só há cinzas contínuas
A chuva que cai
A turfa que se dilata
A Sibéria que anda à volta
As pesadas toalhas de neve que sobem
E o guizo da loucura que guizalha como um último desejo no ar azulado
O comboio palpita no coração de horizontes plúmbeos
E a tua mágoa escarnece...

"Diz-me, Blaise, estamos muito longe de Montmartre?"

As inquietações
Esquece as inquietações
Todas as gares gretadas oblíquas sobre a estrada
Os fios telegráficos de que pendem
Os postes fazendo trejeitos que gesticulam e as estrangulam
O mundo estende-se alonga-se e contraí-se como um harmónio que uma mão sádica atormenta
Nos rasgões do céu as locomotivas em fúria
Escondem-se
E nos buracos
As rodas vertiginosas as bocas as vozes
E os cães malditos que uivam no nosso encalço
Os demónios andam à solta
Ferragens
É tudo um acorde falso
O brum-ru-rum das rodas
Choques
Saltos
Somos uma tempestadade sob o crânio de um surdo...

"Diz-me, Blaise, ainda estamos muito londe de Montmartre?"

Estamos sim, és enervante, sabes muito bem, estamos muito longe
A loucura sobreaquecida berra na locomotiva
A peste a cólera levantam-se como brasas ardentes no nosso caminho
Desaparecemos na guerra em cheio num túnel
A fome, a puta, agarra.se às nuvens em debandada
E defeca batalhas em montes fétidos de mortos
Faz como ela, trata da tua vida...

"Diz-me, Blaise, ainda estamos muito londe de Montmartre?"

(...)

Gostaria
Gostaria de nunca ter feito as minhas viagens
Esta noite um grande amor atormenta-me
E contra a minha vontade penso na jovem Jehanne de France.
Foi numa noite de tristeza que escrevi este poema em sua honra
A jovem prostituta
Estou triste estou triste
Irei ao Lapin Agile recordar-me da minha juventude perdida
E beber uns copos
Depois voltarei sozinho para casa

Paris
Cidade da Torre única da Grande Forca e da Roda



Blaise Cendras - "Prosa do Transiberiano"