sexta-feira, 20 de março de 2009

Cena do ódio - Almada Negreiros

(...)
Tu, que te dizes Homem!
Tu, que te alfaiatas em modas
e fazes cartazes dos fatos que vestes
p'ra que se não vejam as nódoas de baixo!
Tu, qu'inventaste as Ciências e as Filosofias,
as Políticas, as Artes e as Leis,
e outros quebra-cabeças de sala
e outros dramas de grande espectáculo
Tu, que aperfeiçoas sabiamente a arte de matar.
Tu, que descobriste o cabo da Boa-Esperança
e o Caminho Marítimo da índia
e as duas Grandes Américas,
e que levaste a chatice a estas Terras
e que trouxeste de lá mais gente p'raqui
e qu'inda por cima cantaste estes Feitos...
Tu, qu'inventaste a chatice e o balão,
e que farto de te chateares no chão
te foste chatear no ar,
e qu'inda foste inventar submarinos
p'ra te chateares também por debaixo d'água,
Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas
e que nunca descobriste que eras bruto,
e que nunca inventaste a maneira de o não seres
Tu consegues ser cada vez mais besta
e a este progresso chamas Civilização!
(...)
Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio,
órfão da Virgem do meu sentir.
E como queres que eu faça fortuna
se Deus, por escárnio, me deu Inteligência,
e não tenho sequer, irmãs bonitas
nem uma mãe que se venda para mim?
(Pesam quilos no Meu querer
as salas de espera de Mim.
Tu chegas sempre primeiro...
Eu volto sempre amanhã...
Agora vou esperar que morras.
Mas tu és tantos que não morres...
Vou deixar d'esp'rar que morras
- Vou deixar d'esp'rar por mim!)
Ah! que eu sinto, claramente, que nasci
de uma praga de ciúmes!
(...)