domingo, 26 de julho de 2009

Crónica de Lobo Antunes: A crisálida e eu

Uma filha de onze anos é um berbicacho: já não gosta do Jardim Zoológico e ainda não se interessa pela 24 de Julho; não se senta no banco de trás mas não me pede o automóvel emprestado; nos intervalos da leitura do Tio Patinhas exige explicações precisas sobre a anatomia, profissão e tipo de clientela dos travestis do Conde Redondo; senta-se-me ao colo como um bebé e contudo fecha-se na casa de banho para vestir a camisa de noite; não é uma menina nem uma mulher: é uma crisálida indecisa, parte larva parte borboleta, que quer ficar a pé até às quatro da manhã e adormecer de polegar na boca a achar igualmente atraentes o Kevin Costner e o Primo Gastão. Como pode um pobre pai passar férias e fins-de-semana com uma criatura assim, que continua a detestar lavar os dentes e todavia me ralha, indignada, se por sono ou distracção visto a camisa da véspera?
Acabo de passar quinze dias na Praia das Maçãs com este ser contraditório e estranho, que me pede dinheiro para um gelado e pergunta entre
duas lambidelas, com a voz de um editor severo, de boca besuntada de natas
- Esse romance escreve-se ou quê?
Fazendo-me sentir uma culpabilidade horrível por, em vez de corrigir o último capítulo, andar a ler às escondidas a Gazeta dos Desportos com a gulodice com que um adolescente se perde numa revista com coisas nuas.
Quinze dias na Praia das Maçãs é obra: já nem falo na bandeira sempre vermelha, nos dias sempre chuvosos, nos lençóis sempre húmidos, nas pessoas sempre a tossirem: falo na dificuldade de ser ao mesmo tempo pai e mãe de uma mutante de cara coberta por um balão cor-de-rosa de pastilha elástica e unhas de limpeza problemática, a aconselhar-me peixe e vegetais para melhorar os intestinos e a perguntar-me em altos berros, à mesa do restaurante, o que quer dizer carisma, epistemologia e paneleiro; falo de uma criatura cujos produtos de beleza são dois cremes diferentes para o sol, pulseiras e colares sortidos que me obriga a comprar-lhe no quiosque dos jornais e um champô secreto
(- Não diga a ninguém)
para a eventualidade das lêndeas; falo de um ente cujo sorriso se assemelha tanto ao meu que me julgo há muitos anos atrás, a examinar-me ao espelho no quarto dos meus pais surpreendido por habitar uma cara que tinha a maior dificuldade em aceitar que me pertencesse visto que na minha ideia eu era o Mandrake sem tirar
nem pôr em lugar de um miúdo de franja com um sinal na bochecha condenado aos tormentos da gramática.
Quinze dias na Praia das Maçãs, palavra de honra, é obra. Quinze dias na Praia das Maçãs com uma rapariga de onze anos roça a epopeia: joguei matraquilhos, empanzinei-me de hamburguers no pão, vigiei-lhe os mergulhos, impassível como um nadador-salvador (...) de cigarro entre os dentes a fingir de apito, escutei descrições intermináveis acerca dos namorados das amigas (cotomiços lãzudos que mostravam o seu afecto pregando rasteiras às noivas e enchendo-lhes a boca de areia o que, suponho, constitui o cúmulo da sensualidade e da paixão)
Dormimos no mesmo quarto e dei por mim
(fraquezas)
a enternecer-me com o seu sono, a sombra que as pestanas lhe desciam sobre a cara, o livro de quadradinhos pendurado dos dedos como um breviário numa sesta de cónego.
Quinze dias na Praia das Maçãs é obra, uma epopeia, uma chatice, um tormento. Houve alturas em que me apeteceu estrangulá-la, houve alturas em que me apeteceu com veemência que não tivesse nascido. Foi um alívio devolvê-la à mãe, uma alegria voltar a estar sozinho. Sossegado. Em paz. Livre. Não lhe sinto a falta.
Só não consigo compreender porque não está comigo. Não é uma questão de amor.
(Que estupidez o amor)
É que, como sou distraído, se ela não estiver ao pé de mim sou capaz de vestir a mesma roupa durante um mês seguido.