segunda-feira, 23 de novembro de 2009

OPUS A E.P - António Ramos Pereira

Cheguei adiantado à suprema incerteza, o mesmo seria dizer
Que encontrei a mesa de café ainda vazia. Tu estavas talvez em casa
A fazer poemas como quem faz colagens (e não me refiro à sujidade),
Gozando dessa imensa sorte que é passar por original copiando apenas;
Sentado, sozinho, acompanhado somente pelo ruído das conversas
Vou juntando, algures entre o cinzeiro e os guardanapos, não sem deleite
Ideias sobre o que poderás estar a fazer, e ocorre-me esta imagem fabulosa:
Tu, em bicos de pés, dentro de um pijama, a pendurar poemas numa corda
- de estender roupa, fotografias ou jornais, não estou certo -
E a dizeres a ti mesma entre dentes “agora tenho de sair por uns tempos”
Numa reacção digna de um ladrão que, cauteloso, compassa os seus crimes,
Mas não é disso que se trata, creio o que pretendes é dar tempo ao que criaste
Para que possa crescer para além de ti.
Esse faço isolado diz muito sobre o tipo de artífice que és
O que fazes é tanto melhor quanto mais longe dele estiveres.
(Eis uma comparação mais justa: penduras os poemas e sais
Como certo miserável que larga o filho na roda dos enjeitados.)
E”tanto melhor”, claro não tende para o infinito, tenderá no máximo
Para uma existência periférica, hipotecada porquanto dure.
Quando te aperceberes de que nem a nossa ausência vale grande coisa,
Citarás um chinês e de imediato esqueces o que acabas de aprender.
Outro com menos recursos - eu, digamos – ficaria bem mais assustado.

Enquanto isso, na mesma mesa de três pernas e dois crimes estéticos,
Embalo a espera riscando sem critério frases de um caderno,
Quebro o bico do lápis num traço desapiedado, definitivo
E contudo íntimo – com um risco eliminamos várias noites,
Uma frase, saberás, pode valer tanto como uma vida
Ou então mais do que uma moeda furada e fora de circulação.
Mas chega de ironia.